Por Ian Hamilton
Até
algum tempo atrás, uma das marcas distintivas do culto reformado era o
seu compromisso com a santificação do Dia do Senhor como o tempo
divinamente prescrito para que o povo da aliança de Deus adorasse esse
Deus da aliança.
Esta perspectiva puritana possivelmente está melhor demonstrada na Confissão de Fé de Westminster:
“Como é lei da natureza que, em geral, uma devida proporção de tempo
seja destinada ao culto de Deus, assim também, em sua Palavra, por um
preceito positivo, moral e perpétuo, preceito que obriga a todos os
homens, em todas as épocas, Deus designou particularmente um dia em sete
para ser um sábado (= descanso) santificado por ele; desde o princípio
do mundo, até a ressurreição de Cristo, esse dia foi o último da semana;
e desde a ressurreição de Cristo, foi mudada para o primeiro dia da
semana, dia que na Escritura é chamado dia do Senhor (= domingo), e que
há de continuar até ao fim do mundo como o sábado cristão”.
Dizendo isso, os puritanos estavam em consonância com os reformadores ao
dizer que o shabbat (sábado) não era o único dia em que o povo de Deus
se reunia para o culto e também não estavam dizendo que a adoração é um
tipo de atividade exclusivamente corporativa e que apenas acontece
quando a igreja se une para adorar.
Foram os reformadores e puritanos que resgataram para nós a idéia de que
adoração é a resposta do crente momento após momento à Palavra de Deus.
Ao mesmo tempo eles tinham uma convicção apaixonada quanto a este
ponto. Diziam que o culto cristão tem que ser ancorado e baseado no Dia
do Senhor. Existe um debate que sempre está presente entre os próprios
reformados com relação ao Dia do Senhor e o shabbat (sábado). Devemos
considerar o Dia do Senhor como o shabbat? Isso ficará claro à medida
que formos expondo o assunto.
Os que creem na perpetuidade do sábado cristão como sendo uma ordenança
da graça que é obrigatória para todo povo de Deus, precisam lembrar que
não estamos simplesmente engajados num conflito para persuadir nossos
irmãos em Cristo e que passagens como Colossenses 2:16-17 não estão
abolindo o sábado cristão que foi instituído na criação. Nossa batalha é
muito mais séria que isto, pois estamos batalhando para resgatar os
irmão cristãos dos efeitos corrosivos da cultura contemporânea. O que
estamos dizendo é, que o assunto tratado aqui, dentro da tradição
reformada, não é somente de persuadir nossos irmãos em Cristo do caráter
divino, mandatório do sábado cristão (shabbat) como sendo uma ordenança
vinda da criação e do Evangelho, mas na verdade estamos diante de um trabalho
ainda mais exigente. Ou seja, de persuadir nossos irmãos em Cristo da
sabedoria daquele que nos deu o shabbat, do regozijo que é o sábado
cristão e dos efeitos corrosivos e fatais de permitirmos que nossa
cultura contemporânea venha formatar nossa vida espiritual e dos nossos
filhos.
Fiquei extremamente espantado quando, há alguns anos, passei um período
nos Estados Unidos e vi que o dia da final do campeonato de futebol, o
evento esportivo mais enfatizado do ano, era praticado no Dia do Senhor e
que muitas igrejas evangélicas, cristãs, naquele dia, até mesmo que
professavam a fé reformada, cancelavam até os seus cultos dominicais
para permitir que as pessoas fossem assistir este jogo. Quase não
acreditei que isso estivesse acontecendo. Porém, disseram-me que mais
igrejas mudariam até o horário de culto para permitir aos crentes irem a
esta final de campeonato.
Eu tenho um filho que gosta muito de futebol e gosta muito de jogar.
Outro dia ele me perguntou por que se marcavam tantos jogos exatamente
no Dia do Senhor. Meu filho gosta muito de futebol e por isso fica
frustrado quando não pode jogar e sente falta do jogo, mas mesmo assim
não deixa de ir à igreja para participar dos jogos de futebol e nem ao
menos pensa nisso. Mas percebo que esta situação vem continuamente se
projetando para tomar controle sobre a igreja.
Levanto esta questão porque o problema não é realmente a guarda do
sábado cristão, mas é algo mais profundo que isso. O assunto com o qual
nos deparamos é o caráter de Deus, a Sua autoridade, a verdade de Sua
Palavra e a sua suficiência. Se estamos convencidos que Deus é bom,
somente bom, e que todos Seus caminhos para Seus filhos são sábios e
agradáveis, isso nos deveria persuadir a abraçar com alegria a
santificação do Dia do Senhor. Não deveríamos ser levados a pensar que
as leis do Dia do Senhor não são mais para nós hoje e que por isso têm
sido abandonadas por muitos cristãos que professam a fé reformada e que
têm se esquecido de santificar este dia. A razão para isso é que eles
não têm compreendido o sentido do Dia do Senhor.
O problema é mais profundo. A verdade é que as pessoas perderam o
contato de quem Deus é. Creio que dificilmente poderíamos duvidar que,
quando o Dia do Senhor não é uma ordenança graciosa, o culto na igreja
deteriora e em seguida a sociedade deteriora. O Dia do Senhor é um
testemunho da grande benignidade de Deus para com Seu povo e nos dá um
tempo divinamente apontado por Deus para que nós O adoremos e Deus mesmo
nos dá o foco apropriado em relação à Sua adoração.
Quero apresentar dois aspectos com respeito à guarda do Dia do Senhor.
1) Explicar o caráter obrigatório do Dia do Senhor para o cristão; essa
era a convicção dos reformados e puritanos e que surgiu de uma
compreensão correta das Escrituras.
2) Destacar o significado e os benefícios de se observar o Dia do Senhor reservando-o para um culto que honra a Deus.
Caráter Obrigatório
I) Inicialmente gostaria de dizer que o Dia do Senhor foi instituído por
Deus na criação. Lemos em Gênesis 2 que Deus terminou sua obra no sexto
dia e no sétimo descansou do que havia feito. Deus abençoou o sétimo
dia e o santificou porque nele descansara de todas as obras que havia
feito. Antes que o pecado entrasse no mundo Deus já havia providenciado
um sábado (descanso) para Adão e Eva e seus filhos. Nas palavras do
grande presbiteriano John Murray, o sábado é uma ordenança da criação
dada por Deus para o benefício de todas as Suas criaturas. Geralmente se
diz que Calvino ensinava que o sábado, como dia de descanso, havia sido
ab-rogado na dispensação do Novo Testamento. Para apoiar isso, são
citados seus comentários sobre o quarto mandamento e sua exposição em
Colossenses 2:16-17. Sem dúvida existe alguma diferença entre a
perspectiva de Calvino e os puritanos, mas na minha opinião são
circunstanciais e pequenas. Quando lemos o que Calvino escreveu no seu
comentário de Gênesis 2:3, escrito em 1561, dois anos depois da edição
final das Institutas, o que é bastante significativo, encontramos uma
exposição que o reformador faz de forma sucinta, da sua perspectiva do
sábado cristão. Calvino disse:
“Quando ouvimos que o sábado foi ab-rogado pela vinda de Cristo, devemos
distinguir o que pertence ao governo perpétuo da vida humana e o que
pertence propriamente às figuras antigas. O uso destas foi abolida
quando a verdade foi cumprida. Descanso espiritual é a mortificação da
carne ao ponto de que os filhos de Deus não devem viver para si mesmos
ou permitir livremente as ações de suas inclinações. Assim, na medida
que o sábado era uma figura desse descanso espiritual, eu digo que isso
foi somente por um tempo (obs: com isso os puritanos concordariam). Mas,
na medida em que foi ordenado aos homens, desde o início, de que eles
deveriam se engajar no culto a Deus, é legítimo que o sábado cristão
deva continuar até o fim do mundo. O sábado é uma ordenação da criação
que é perpétua”.
II) A segunda coisa que tenho para afirmar é que o sábado cristão está
baseado no exemplo divino. Esse é o ponto de Moisés em Êxodo 20:11. O
ritmo do homem alternado entre trabalho e descanso é o sério padrão do
ritmo criador. John Murray faz a seguinte afirmativa: “Podemos pensar no
exemplo que Deus nos deu de trabalho e descanso como sendo um padrão de
conduta eterno para a raça humana nas ordenanças de trabalho e
descanso”.
III) A ordem de Deus para que guardemos o Dia do Senhor está embutida
nos dez mandamentos. O quarto mandamento garante e valida a permanência
do mandamento para guardarmos o Dia do Senhor e estabelece a guarda do
sábado cristão no coração da vida de adoração do povo de Deus. Acho
absurdo quando ouço irmãos que, dizendo-se reformados, tentam me
convencer que o “shabbat”, o sábado, foi abolido, deixando um dos dez
mandamentos fora de validade para a vida do povo de Deus. Na verdade,
Deus deu validade à guarda do sábado por colocá-lo dentro do decálogo.
IV) Nosso Senhor Jesus Cristo destacou a importância da permanência do
shabbat. Jesus nos diz em Marcos 2.27: “O sábado foi estabelecido por
causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho
do Homem é senhor também do sábado”. O que mais poderíamos dizer com
relação a isso? A minha preocupação é simplesmente mostrar a importância
do fundamento da guarda permanente do shabbat. Deus tem gravado esta
verdade em Sua Palavra e nós nos desviamos dessa ordenança apenas para
sermos prejudicados espiritualmente. Pertence nossa obediência à verdade
revelada de Deus e nossa submissão ao nosso Pai amorável. Tendo
estabelecido o fundamento bíblico para o dia do Senhor e considerando a
transição do sábado para o domingo, quero considerar quais os benefícios
e o significado de guardar o dia do Senhor.
Significado e Benefícios
I) O shabbat nos dá uma oportunidade de buscar o Senhor e adorá-lo sem
distração. No ano passado passei um tempo no Marrocos visitando famílias
cristãs. Viver num país muçulmano como aquele significa não ter
liberdade para guardar o Dia do Senhor como os cristãos gostariam. Mas
em países como Brasil e Escócia ainda temos o privilégio precioso dado
por Deus de preservar e guardar o Dia do Senhor como um dia santo.
Irmãos, valorizem o Dia do Senhor; lutem por ele; os assuntos
relacionados com a guarda do dia de descanso são profundos. Essa
provisão que Deus nos faz que o adoremos sem distração alguma é uma
visão que vem do próprio Deus.
II) O shabbat nos dá oportunidade de adorar coletivamente a Deus e
buscá-lO juntos. O shabbat enfatiza o caráter bíblico e corporativo do
culto que se deve prestar a Deus. O nosso Deus fez uma provisão graciosa
por seu povo. Ou seja, que O adoremos juntos. Esta verdade perece dia
após dia em nossa época. Desde o iluminismo, na cultura ocidental e
particular, o indivíduo tornou-se o centro de todas as coisas e essa
preocupação absorvente com o indivíduo desfechou um golpe mortal no
pensamento bíblico com respeito à aliança. Os cristãos não têm mais
qualquer doutrina, não têm mais esta compreensão do caráter coletivo da
Igreja, e mesmo cristãos que se professam reformados não têm mais
qualquer sentido do caráter corporativo do culto da aliança. Estou cada
vez mais convencido que o sábado cristão é talvez o meio principal usado
por Deus de educar o seu povo na vida e no culto do pacto. Guardar o
Dia do Senhor, o sábado cristão, é o antídoto poderoso para aquele
individualismo absorvente que marca tanto o mundo que nós vivemos como a
igreja de Cristo.
III) O shabbat coloca diante de nós os grandes feitos de Deus na criação
e na redenção. No sábado cristão somos graciosamente capacitados por
Deus em nos centralizarmos na criação e na redenção e despertar nossos
corações e mentes ao seu louvor. Calvino coloca o seu dedo exatamente
nesse ponto. No livro II das Institutas, capítulo 8, ele diz:
“Durante o repouso do sétimo dia, na verdade, quando Deus determinou que
se descansasse no sétimo dia, o legislador divino queria falar ao povo
de Israel do descanso espiritual quando os cristãos devem deixar de lado
o seu trabalho para permitir que Deus trabalhe neles”.
Em outras palavras, o shabbat nos dá oportunidade de repousar de nossas
próprias obras e nos concentrar nas obras de Deus. Nesse sentido, o
shabbat é um símbolo evangélico, um glorioso símbolo semanal da
justificação gratuita. Nós vivemos em uma época em que os cristãos andam
em busca de sinais e símbolos. Demos a eles o grande símbolo do
Evangelho: um dos grandes símbolos e sinais do Evangelho é o shabbat que
nos foi dado por Deus.
IV) O shabbat destaca a importância dos cultos matinais e vespertinos.
Parece muito simplório. Mas mesmo assim é importante falar deles. Honrem
o sábado cristão, não somente uma parte dele, mas como um todo. Se
havia uma coisa que caracterizava a religião puritana, a prática
puritana, era a maneira cuidadosa que brotava de seus corações e pela
qual eles se entregavam alegremente, de forma não legalista, à guarda do
Dia do Senhor.
V) O Dia do Senhor é uma preparação para o céu. Ouçamos as palavras de
Richard Baxter: “Qual o dia mais apropriado para subir ao céu do que
aquele em que Ele ressurgiu da terra e triunfou completamente sobre a
morte e o inferno? Use o seu shabbat como passos para a glorificação até
que tenha passado por todos eles e chegue à glória”. A religião
puritana floresceu no solo regozijante da guarda do sábado cristão. É
por causa destas coisas que somos chamados em Isaías 58, pelo próprio
Senhor, para considerarmos o sábado como um deleite e a isso ele
adiciona uma promessa. Se guardarmos seus sábados como sendo um deleite,
encontraremos nossa alegria no Senhor.
Esse capítulo 58 de Isaías é mais uma confirmação de que a guarda do
sábado cristão deveria ser considerada como parte da Lei Moral e não
simplesmente mais uma observância pertinentes às leis cerimoniais. Esta
passagem de Isaías onde o mero cerimonialismo é denunciado pelo profeta,
há um apelo para a guarda do sábado como sendo importante para o culto
espiritual.
Sei que existe o perigo de dar ao sábado cristão um lugar central no
culto, fazendo com que ele torne-se um exercício de justiça própria.
Sabemos da condenação tremenda feita pelo Senhor em Isaías 1. Mas os
crentes reformados deveriam guardar o Dia do Senhor de forma santa.
Devemos chamá-lo de um deleitoso. Por quê? Por causa de nossa obediência
ao nosso Deus e amor ao nosso Salvador. Jesus disse: “Se vocês me amam,
guardem meus mandamentos”.
Neste sentido a guarda do Dia do Senhor, o sábado cristão, ou é o
resultado da obediência legalista, ou da obediência evangélica. Se for o
produto de uma obediência legalista, a guarda do dia do Senhor será sem
alegria, monótona, formal e alguma coisa que simplesmente traz
auto-justiça e vaidade pessoal. Mas se a guarda do Dia do Senhor é o
resultado de uma obediência evangélica, será profundamente regozijante.
Diremos como o salmista: “Alegrei-me quando me disseram, vamos à casa do
Senhor”. Se for uma guarda por causa de uma obediência evangélica, será
algo refrescante que nos revigora e nos humilha.
John Murray, cujos escritos trouxeram uma impressão inapagável na minha
vida quando moço (Por exemplo: Redenção, Conquistada e Aplicada (Cultura
Cristã ― Obra que considerei como a melhor peça sobre justificação
jamais escrita por alguém), disse: “O shabbat semanal é uma promessa, um
sinal, e um antegozo daquele descanso consumado. A filosofia bíblica do
shabbat é de tal maneira, que negar sua perpetuidade é privar o
movimento da redenção de uma das suas mais preciosas características”.
Vivemos numa época em que mais do que nunca precisamos resgatar o
shabbat para o povo de Deus, porque amamos o povo de Deus e desejamos
seu bem diante de Deus. Sabemos que Deus quer abençoar Seu povo com
isso. Mas sabemos também que a bênção que Ele deseja dar nunca virá sem a
honra que o povo deve ao Dia do Senhor. Pelo bem espiritual dos nossos
filhos devemos educá-los ensinando a honrar o Dia do Senhor, mas não
como uma coisa rotineira e sem alegria. Como poderia o cultuar a Deus e
esperar nEle ser algo monótono ou cansativo? Na verdade, o Dia do Senhor
foi algo criado por Deus para o bem de Seus filhos. Estou quase
convencido que o sucesso dos puritanos pode ser traçado por seu
compromisso de guardar o Dia do Senhor para honra de Deus. Deus abençoou
grandemente seus labores, seus escritos, porque foram homens e mulheres
que honraram o dia do Senhor.
Finalmente cito Baxter porque creio que suas palavras expressam o
coração da compreensão puritana com respeito ao shabbat: “Que dia é mais
apropriado para subir ao céu do que aquele em que ele ressurgiu da
terra e triunfou plenamente sobre a morte e o inferno? Use seus shabbats
como passos para a glória até que tenha passado por todos eles e lá
tenha chegado”.
O Dia do Senhor é para o povo do Senhor como um antegozo ou penhor do
céu que nós tanto almejamos. Nós desejamos e sonhamos com aquele dia em
que estaremos com o Senhor para sempre. Até que aquele dia venha,
façamos do Dia do Senhor tudo aquilo que Deus gostaria que fizéssemos.
Que seja o pulso palpitante da vida espiritual da Igreja e que partindo
de nossa obediência evangélica nos reunamos para o encontro com nosso
Deus e para receber as promessas que Ele decidiu nos dar, para aqueles
que honram o Seu dia, porque assim honram aquEle que instituiu esse dia.
Amém.
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