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quinta-feira, 18 de março de 2010

A Palavra de Deus e a Ciência


A PALAVRA DE DEUS E A CIÊNCIA
Por
James H. Olthuis



1. O problema da relação da Bíblia com a ciência é de fundamental importância para qualquer grupo de cristãos envolvido no trabalho teórico. Ao mesmo tempo, esta formulação costumeira da questão, a relação da Bíblia com a ciência, é inadequada e requer desenvolvimento. O real ponto em jogo é a relação da Palavra de Deus com a ciência, e não meramente, como amiúde se sugere, a relação da Palavra Escrita com a ciência.
Somente quando fica claro a respeito de como devemos conceber a Palavra de Deus, incluindo as Escrituras, é possível prosseguir e refletir sobre a relação Bíblia e ciência. Por essa razão, e visto que está se tornando cada vez mais nítido que não há consenso algum com respeito à natureza da Palavra, para não dizer que em geral a maioria dos cristãos apega-se a ponto de vista sobre a Palavra que em si mesmo a minimiza, esta monografia tratará de forma ampla dessa matéria cardeal. Na conclusão, a significância do que está dito sobre a Palavra para a ciência será resumido.

2. Confessando que as Escrituras são proveitosas para a instrução, voltamo-nos para elas a fim de sermos instruídos quanto à natureza da Palavra de Deus. Nesse ponto inicial somente podemos apelar às Escrituras. Não podemos apelar à Razão de uma forma racionalística ou neo-racionalística, nem à consciência religiosa à la Schleiermacher, tampouco aos resultados do método crítico-histórico em suas formas dos séculos XIX ou XX.

3. Nosso apelo às Escrituras toma a forma de confissão. Confessamos que é nas Escrituras que chegamos para conhecer a Cristo. Cremos em Cristo conforme as Escrituras. Em fé nos curvamos diante das Escrituras como a Palavra de Deus. Que não podemos ir aquém ou além das Escrituras para testar a autoridade delas como a Palavra de Deus não é problema a se reconhecer. Se houvesse uma autoridade mais alta pela qual corroborar as Escrituras, essas não seriam a Palavra ou o Cânon para a nova criação. No princípio da ação humana, incluindo os esforços científicos, um homem deve confessar em que ele coloca sua confiança primeira e final, deve ele escolher se viverá pela Palavra ou por alguma pseudo-palavra.

4. Ao se estudar as Escrituras com o fito de receber os primeiros princípios a partir dos quais alguém pode formular uma doutrina da Palavra, fica chocantemente claro que a comunidade cristã tem sido e ainda é empestada por uma trágica redução da Palavra de Deus. Hoje os ‘liberais’ estão preocupados em defender que apenas Cristo é a Palavra – se é que estão mesmo desejosos de admitir isso – e os ‘conservadores’ lutam para defender o fato de que tanto as Escrituras quanto Cristo são a Palavra. [1]
Entrementes, as Escrituras são enfáticas em sua oposição tanto aos liberais quanto aos conservadores, pois “pela palavra do SENHOR foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca. … Porque falou, e foi feito; mandou, e logo apareceu. ” (Sl 33.6-9). Além disso, o salmista atesta que Ele é “o que envia o seu mandamento à terra; a sua palavra corre velozmente. O que dá a neve como lã; esparge a geada como cinza; o que lança o seu gelo em pedaços; quem pode resistir ao seu frio? Manda a sua palavra, e os faz derreter; faz soprar o vento, e correm as águas. Mostra a sua palavra a Jacó, os seus estatutos e os seus juízos a Israel” (Sl 147.15-19). “Fogo e saraiva, neve e vapores, e vento tempestuoso que executa a sua palavra” (Sl 148.8).
E as palavras de Pedro são pertinentes: “Eles voluntariamente ignoram isto, que pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que foi tirada da água e no meio da água …. Mas … pela mesma palavra se reservam como tesouro, e se guardam para o fogo ….” (2 Pe 3.5-7; cf. Hb 11.3; Sl 119.89-96).
As Escrituras exigem que em nossa reflexão levemos em conta o fato de que o mundo foi criado pela Palavra de Deus. “E Deus disse, haja … e houve”. Qualquer discussão sobre a Palavra não pode ficar limitada às Escrituras ou mesmo a Cristo. Deus falou e o mundo foi formado. Nada existe em si mesmo ou por si mesmo. Todas as coisas foram criadas por Deus através da Palavra, e todas as coisas são reconciliadas por Deus através da Palavra. Todas as coisas são sustentadas pela “palavra do seu poder” (Hb 1.3). Deus pôs sua Palavra no mundo e chamou à existência a criação e a mesma Palavra o sustenta no lugar até o presente em Jesus Cristo, em quem todas as coisas mantêm-se coesas (cf. Gn 1, Jó 38, Jo 1, Ef 1, Cl 1). A única continuidade entre Deus e sua criação é a Palavra. Sem essa Palavra, o mundo simplesmente se extinguiria. E o Espírito do Senhor conduz e move a criação, segundo a direção da Palavra, para o escathon em que Deus será tudo-em-todos.

4. Quando os liberais e igualmente os conservadores, inclusive homens de ciência, ignoram esse explícito testemunho das Escrituras, emasculam sua confissão de que Cristo e as Escrituras são a Palavra. Pois, sem a concepção bíblica de que a Palavra de Deus estrutura e dirige a criação, é impossível compreender o sentido e propósito da Palavra Escrita como o meio pelo qual, depois da Queda, a humanidade pode novamente ver seu lugar e função no mundo. Ademais, sem a concepção bíblica da Palavra como a Lei-Palavra para a criação, é impossível fazer justiça à Palavra Encarnada como Aquele em quem todas as coisas existem e se mantêm coesas (cf. Ef 1 e Cl 1). Isolando a Cristo daquela Lei-Palavra não se pode começar a entender apropriadamente a confissão de João 1, de que todas as coisas foram feitas por intermédio da Palavra e que sem Ele nada se fez. Não se pode captar o sentido de Hebreus 1 de que o Filho de Deus sustenta o universo por Sua Palavra de poder.
A Igreja Cristã tem que recuperar a plenitude e unidade da Palavra de Deus. A Palavra de Deus é una. Porém, desde a queda do homem, tal Palavra também nos vem nas formas Inscriturada e Encarnada. Quando a raça humana caiu em Adão, ela não mais ouviu nem compreendeu a Palavra. Para tornar outra vez possível ao homem ouvir e realizar a Palavra e assim viver, Deus deu as Escrituras para iluminar o homem quanto ao seu lugar, sua natureza e sua função. Finalmente, “falou-nos nestes últimos dias pelo Filho” (Hb 1.1). A palavra, em sua unidade e em suas formas, é o Poder de Deus para a vida. Essa Palavra “é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes” (Hb 4.12).
Porquanto a Palavra é una, é tão ilegítimo jogar suas formas uma contra a outra (e.g., ‘você vai pela Lei-Palavra ou pelas Escrituras?’) quanto negar que todas as formas são a Palavra. Para obedecer à Palavra de Deus Escrita é preciso confessar que a Palavra não se exaure nas Escrituras. A Palavra de Deus é toda palavra que procede da boca dele. E, posto que o Senhor é fiel e Suas palavras fidedignas, as palavras de Deus constituem a Palavra una.

5. O mistério das Escrituras e de Cristo e, simultaneamente, nosso gozo e salvação, é o fato de que nas Escrituras e em Cristo a Palavra de Deus assume a forma de realidade criatural que está sujeita à Palavra. Dessa maneira, as Escrituras e Cristo são completamente humanos (criaturais) e, ao mesmo tempo, completamente a Palavra (divinos). Dessa maneira, as Escrituras e Cristo são “maçanetas” pelas quais uma criação caída pode de novo ver e obedecer à Palavra. A Palavra tornou-se carne; foi Inscriturada e Encarnada para nossa salvação.
As Escrituras republicam a Palavra na forma criatural de confissão. Enquanto livro de confissão as Escrituras revelam a Palavra como Norma para confissão. Dito em outras palavras: as Escrituras nos instam a render nossas vidas ao Senhor e coloca diante de nós a Orientação para a obediência. Elas desvendam para a humanidade a visão do Reino de Cristo e a necessidade de confessar seu nome para viver em tal Reino. As Escrituras traçam as linhas principais de uma visão confessional a qual deve guiar nossas atividades no dia-a-dia. Elas nos relatam quem somos (servos de Deus), onde estamos (em uma criação no domínio de Sua Palavra), onde estamos andando (em Cristo, para a perfeição final do Reino já amanhecente) e qual a nossa função (a de jardineiros obedientes, agentes da reconciliação). Desse modo as Escrituras, por meio de Cristo, põe-nos de volta no lugar de sorte que podemos outra vez ouvir, ver e conhecer corretamente a Palavra de Deus sustentando a criação. Com a atenção presa por essa visão do Reino e de nossa função nele, com temor e tremor a humanidade deve começar a desenvolver o sentido dessa salvação no todo de suas atividades, e ainda na ciência.

6. A Palavra de Deus ou Lei-Palavra é, em sua unidade, uma diversidade coerente. Muitas palavras do Senhor, muitos “hajas” compõem a Palavra una. E o homem deve viver de cada palavra que procede da boca de Deus, não somente pela palavra para pão. A Palavra, em sua diversidade como estruturas lei-ordem, dirige e preserva a criação. A lei-ordem é a estrutura-para as estruturas-da criação.
É importante atentar a esse uso dual da estrutura. Usualmente, quando alguém fala de estruturas, faz referência à composição das totalidades concretas. Referir-me-ei a semelhantes estruturas pertencentes à realidade e assim sujeitas à lei como estruturas-de (structures-of). Elas são estruturas de sentido. Ao mesmo tempo, são as estruturas-para (structures-for) que delimitam e tornam possíveis as estruturas-de. É o sentido dessas estruturas-para que é comumente negligenciado ou confundido ou identificado com as estruturas-de. Porém, é justamente a estrutura-para que é a Palavra de Deus. A estrutura-para é a lei condicionante fundamental que primeiramente torna possível a existência das coisas, eventos, estruturas societárias etc. Trata-se do arcabouço estruturador fora do qual nada existe ou pode existir.

7. O texto precedente deixa claro que a realidade nunca é somente “lá fora”, para ser racionalmente apreendida. A realidade é sempre a revelação progressiva da Palavra de Deus ou, desde a Queda, a revelação da Mentira do Diabo. Na mesma proporção em que a revelação da Palavra é significativa, também na mesma proporção a revelação da Mentira é destituída de significado.
Em consequência, a ciência não é a investigação racional nem o domínio de uma realidade racionalmente qualificada, nem é ela o estabelecimento de modelos com a finalidade de introduzir alguma ordem no caos da realidade. Mais exatamente, o trabalho científico é basicamente uma resposta à Palavra de Deus, no qual se fazem esforços para delimitar as estruturas-para as várias áreas da criação.
Teorização ou ciência é o tipo de atividade humana concreta caracterizada pela abstração lógica. A teoria envolve abstração da totalidade da realidade para um aspecto(s) ou segmento(s) dela, do particular para o geral. A teoria tem por propósito a delimitação das lei-estruturas para as áreas de interesse. Por exemplo, um botânico, enquanto botânico, está interessado no aspecto orgânico das árvores, não nas árvores como objetos de culto, como economicamente valiosas ou esteticamente agradáveis. Ele não está interessado nessa ou naquela árvore em particular, mas nas árvores em geral. Têm a intenção de descobrir as lei-estruturas orgânicas que as mantêm.

8. Só se descobre as estruturas-para (lei) em sua via teorizante, através das e nas estruturas-de (factualidade sujeita à lei). Adquire-se discernimento (insight) sobre as estruturas-para mediante observação das regularidades e lei-conformidades dadas na experimentação das estruturas-de. As leis estruturais mantêm a criação; elas nunca estão perto suscetíveis de serem captadas. Mais precisamente, são elas as próprias condições do que está perto e que pode ser captado. Tudo isso quer dizer que alguém, em seu interesse pela estrutura-para não está abandonando a realidade (metafisicamente), como frequentemente se dá a entender, em prol das regiões etéreas dalém. Ao mesmo tempo, ele não fica empiristicamente trancado na factualidade. Antes, esse alguém vai ao trabalho investigando empiricamente a experiência a fim de, através das regularidades observadas, obter mais claro discernimento (insight) sobre a ordem mantenedora da realidade.
Deve-se bem notar que não se trata de o homem poder delimitar com segurança as apriorísticas estruturas-para partindo da experiência dele com as factuais estruturas-de. Entretanto, mesmo que nossas descrições científicas das estruturas-para sejam falíveis e estejam sempre abertas à correção, isso não afeta sequer minimamente a força-obtentora de tais leis. As estruturas-para não são dependentes do conhecimento humano para a sua constituição. Nossas descrições jamais podem ser identificadas com ou igualadas às estruturas-para. Paralelamente, é o dever da ciência trabalhar sempre com mais afinco para aumentar nosso discernimento dessas estruturas-para.
O conhecimento científico, uma vez reunido, pode, sempre que traduzido e integrado às situações da vida, ajudar a humanidade com a maior eficácia e obediência para ordenar a vida dessa perante a face do Senhor.

9. Como alguém responde às diversas palavras do Senhor em sua teorização depende, em última análise, de sua resposta de coração à Palavra em sua unidade. Somente quando se rende de todo coração à Palavra fica aquele capaz (em princípio) de ver as várias palavras em sua perspectiva, inter-relação e unidade próprias. Fora de Cristo se eleva uma dimensão e se perpetra distorção fazendo-se de conta que se trata da Palavra em sua unidade. (Isso não é negar que muito trabalho valioso pode ser feito e é feito por cientistas não-cristãos. Afinal de contas, eles também estão trabalhando dentro da criação formada e delimitada pela Palavra. Mas, havendo rejeitado a chave do conhecimento, eles nunca compreenderão o sentido da realidade, ainda que descubram muitas coisas. Os cientistas modernos, fora de Cristo, são como os fariseus, que conheciam tudo e, ao mesmo tempo, nada das Escrituras.)
Desde a Queda, somente em rendição a Jesus Cristo é que se consegue conhecer a Palavra. E, visto que Cristo é conhecido por via das Escrituras, e visto que a Palavra para a criação é conhecida em sua acepção nuclear central por meio das lentes delas, a Bíblia é indispensável para a ciência.
Concomitantemente, posto que as Escrituras são uma republicação da Palavra em forma confessional e não uma republicação em forma teórica, de modo algum elas são livros-textos científicos. Aos cientistas, impelidos esses pelos motivos escriturísticos, ordena-se investigar as realidades da criação e, assim, delinear as estruturas-para aquelas realidades.

10. Talvez seja útil por um momento comparar tal abordagem com a mais costumeira. Se simplesmente perguntarmos sobre a relação da Bíblia com a ciência, cria-se a impressão de que a atividade científica é uma atividade em si mesma e aí em seguida, por sermos cristãos, surge a questão a respeito da relação de nosso trabalho científico com as Escrituras. Com essa postura fica difícil, se não impossível, evitar conceber a relação como uma questão da relação entre natureza (ciência) e graça (Escrituras). Mesmo o discurso sobre encontrar a conexão intrínseca pode ser mal-compreendida. Ela deixa aberta a possibilidade de que a ciência enquanto ciência pode se ocupar com suas coisas sem preocupação com a Palavra.
O tema deste breve ensaio é que a atividade científica em si própria, seja conduzida em sujeição ou em rejeição a Cristo, só é uma possibilidade devido à Palavra de Deus.

11. Toda ciência está íntima, integral e inextricavelmente atada à Palavra de Deus. Toda teorização é uma resposta à Palavra. Toda ciência é uma ciência de uma dimensão ou lado da Palavra. Nesse sentido, a teologia não tem nenhum status especial; entrementes, podemos chamar toda ciência de sagrada.
Havendo crido em Cristo consoante as Escrituras, nossos olhos são mais uma vez abertos para ver e conhecer sobre como a Palavra domina e dirige a criação. Para os homens de ciência isso é de suma importância, conforme tentam trazer todo pensamento cativo a Jesus Cristo.

NOTA:

[1] – No prosseguimento da leitura, o leitor precisará ter em mente o fato de que, nas principais versões da Bíblia em inglês (que são as que o nosso autor leva em conta), no célebre trecho de Jo 1.1ss consta Jesus como sendo a “Palavra” (Word), não o “Verbo”, como nas edições portuguesas mais comuns, tanto evangélicas (Almeida) quanto católicas (Figueiredo). Isso porque essas traduções vernáculas, em grande medida, baseiam-se na Vulgata latina, que verte o termo grego Logos como Verbum. (N. do T.)

James H. Olthius, PhD (Free University, Amsterdam), B.D., (Calvin College), é docente de teologia filosófica no Institute for Christian Studies em Toronto, no Canáda. Sua erudição acadêmica também abarca as áreas de antropologia filosófica, hermenêutica, ética e psicoterapia.
Tradução: Vanderson Moura da Silva.
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FONTE: http://monergismo.com/?p=2295

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